Gata de Rodas - São Paulo Cycle Chic

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Interações urbanas

De vez em quando eu acordo fofa e elogio pacas as pessoas. Mas é elogio geral, indiscriminado e sincero. Os olhos incríveis do caixa de banco, a mão bem-feita e linda da colega de trabalho, o texto bacana do blog de fulano, o jeitinho extracharming de usar cachecol de uma amiga. Sei lá, é gostoso elogiar pessoas, quando tem brecha. É o tipo de elogio que eu gosto de receber. Aliás, às vezes quebra o climão tenso do dia a dia, pelo inesperado. E percebo que parte do inesperado é esse elogio de graça, sem querer nada em troca (ainda que geralmente eu ganhe no mínimo um sorriso).

Por outro lado, eu morro de preguiça de um certo tipo de elogio. Bizarro e contraditório, né? É que a maioria cai meio esquisito, por serem genéricos e deslocados. "Nossa, você é muito linda." Aaaahhn, brigada. Meio que acaba a conversa aí, um pouco porque eu perco o interesse, um pouco porque não tem muito o que dizer, um pouco porque dependendo do tom e de quem elogia, já cria uma barreira defensiva de leve. Entendo que muitas vezes a pessoa não faz por mal, mas não me desce, porque esse elogio tem uma porção de implicações na relação homem-mulher. Quando for perfeitamente ok um homem elogiar a beleza de outro sem que isso tenha nenhuma conotação erótica ou de atração, vai ser mais natural que isso seja tópico de conversa.

Por outro lado, essa barreira é tão sacal quanto necessária. Outro dia eu estava subindo a Augusta e tive um problema no pedal. Desmontei e comecei a empurrar a bicicleta nos últimos quarteirões. De um estacionamento, um segurança disse "boa noite". Enterrei a cabeça no peito e fixei os olhos no celular, fingindo que não ouvi. Já respondi boa-noite e me dei muito mal, porque a pessoa entende o cumprimento como um "liberou geral" e responde alguma coisa altamente constrangedora, como se eu tivesse me colocado disponível para um avanço. Mas o segurança insistiu: "Moça, posso fazer uma pergunta?". Parei e olhei para ele, que sorriu.

- Você já apareceu numa matéria de bicicleta, né?
- Já sim - a essa altura, eu estava morrendo de vergonha, porque minha reserva se transformou numa tremenda grosseria com uma pessoa que estava falando muito honestamente comigo. Corei e sorri para disfarçar.
- Acho isso muito legal. Vejo você passando sempre aqui. É bom que incentiva mais gente a pedalar, né?
- Ah, é sim. Vocês que trabalham aqui - o pipoqueiro ouvia a conversa com a maior atenção - devem sofrer muito com o barulho e a poluição. Ia ser tão bom que parte desses carros fossem bikes...
- É verdade.
- Moço, desculpa não ter respondido o boa-noite. Você sabe, a gente nunca sabe direito com que intenção as pessoas abordam a gente...
- Imagina - pela cara dele, ele sacou que não foi por mal, e não parecia nada ofendido. Isso só me deixou com mais vergonha, porque jogou na minha cara o quanto a gente se condiciona a esperar o pior das pessoas por conta das experiências ruins (e péssimas) que fazem parte da existência.

Mais umas frases trocadas, me despedi e continuei subindo. No mesmo quarteirão, passei em frente ao Habib's da Augusta, onde de vez em quando rolam altas grosserias da parte dos entregadores quando me veem subir pedalando. Já respondi com um foda-se, cansada de aturar os comentários desagradáveis. É triste. Preferia pode sorrir, sem por isso ser tratada como uma vagabunda dando mole.

Muita gente diz que hoje em dia, o feminismo perdeu sua razão de ser. Que com as últimas conquistas da mulher, a igualdade de gênero já foi conquistada. Quando uma mulher sai na rua e é constrangida, fica claro que não. Quando uma resposta cordial, um sorriso ou até um jeito de vestir mais arrumado dão a entender que você está disponível e dando permissão para comentarem em voz alta sobre corpo e seu comportamento, a estrutura é opressora - porque nem homens nem mulheres tem por padrão agir nessa maneira com um homem sozinho na rua.

O moço do estacionamento não sabe, mas me devolveu um pouco de humanidade. Ele é exemplo tanto quanto o bando de entregadores do Habib's são motivo de vergonha para mim (e deveriam ser para os outros homens). Quando eu escolho sair de trás do insulfilm e ser livre ao pedalar minha bicicleta, eu quero estar aberta a convivência no espaço público e construir relações com as outras pessoas que moram na cidade.

"And, in the end, the love you take/ Is equal to the love you make."

11 comentários:

  1. Nossa, isso é verdade, eu então vivo me escondendo quando falam comigo, depois de ouvir a vida toda que eu sou muito magra, muito torta (oposto da maioria, ahushaas)...

    Adorei a frase final, é minha música preferida dos Beatles e também está na minha assinatura do Deviantart.

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  2. nessa ultima bicicletada um cara (que nao conheço) disse que eu mandei um dedo pra ele outro dia pq ele gritou qualquer coisa do ponto do onibus enquanto eu subia a brigadeiro.

    já xinguei um motorista que tava me dando os parabens por eu pedalar e quando cheguei mais perto notei que era meu vizinho.

    infelizmente são atitudes instintivas de quem sofre assedios ridiculos diariamente. pura reação de defesa, uma capa que somos obrigadas a cultivar.

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  3. Adorei que voltou a ativa com esse blog! Não suportava ver ele parado! Poucas iniciativas ciclechic por aqui! Parabéns e sucesso!

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  4. Ei, seu blog é um achado para mim pois adoro moda e faz tempo que quero adotar a bicicleta como veículo. Inclusive recentemente escrevi um post a respeito disso e citei você. Se quiser, dá uma passadinha lá no Sherviajando.

    Um abraço!

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  5. a gente se surpreender com a gentileza e o respeito do outro é tão absurdo quanto real...
    adorei o texto!

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  6. Texto incrível.

    Tentei escrever mais, mas resumo meu elogio aqui, porque realmente era a única coisa que eu queria dizer quando abri a caixa de comentários.

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  7. Oi adorei teu texto! Vim parar aqui através do blog da Caloi. Comprei uma bike há poucas semanas.
    Ah, aproveitando , conhece esse site:

    http://twitter.com/#!/pedreiro_online

    Quando alguem lhe chamar de linda, pode responder: tirou do Pedreiro Online rs..
    Bjo!
    Alexandre Freitas (Santos-SP)

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  8. Acho que essa culpa deve ser dividida em partes iguais, até escrevi sobre isso no meu blog... as mulheres (algumas, não todas) tem certa culpa no cartório por esse tipo de coisa.

    Esse negócio de "cachorra", Mulher Melancia, abacate, maracujá de gaveta, mexerica, mamão, kiwi, pera, uva, o CEAGESP inteiro, foi o que estragou com tudo. A mulher se tornou, aos olhos de alguns, um produto a ser consumido. Mais nada. E um elogio sincero - "você é linda", e é mesmo! - vira uma tentativa de estupro.

    Um dia, isso muda. Daqui a 25 gerações, mas muda, se Deus quiser.

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  9. Leonardo, feliz de ter um leitor inteligente como você. Mas da mesma forma que nem todo homem é um animal guiado pelos intintos, nem toda mulher se coloca na posição de "mulher fruta". Acho vulgar e desnecessário, mas também não acho que dá o direito a um homem de abusá-la.

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  10. Oi!
    Achei esse teu blog sem querer, pesquisando sobre a combinação roupas formais + bicicleta. Comprei uma dobrável para fazer os percursos no horário de almoço e ir ao pilates. Ir ao trabalho ainda não dá, pois aqui em Fortaleza a cultura de usar bicicleta no dia a dia ainda está tomando corpo. Nos últimos meses o movimento se intensificou e chegou a acontecer alguns passeios Ciclochics (chamados Ciclo do Seu Jeito). Infelizmente ainda não pude participar de nenhum deles, mas de todo modo ainda estou me familiarizando com a prática em meio ao trânsito caótico e mal educado daqui.
    Vi que o blog me pareceu parado, o que é uma pena. Espero que ele volte a funcionar. Enquanto isso, vou me divertindo com o que já tem aqui.
    Obrigada por contribuir com esse espaço.
    Beijos!

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